Se o retrato do que acontece atrás das grades de uma prisão é o
espelho de uma sociedade, o Brasil pode entender a barbárie da
qual se queixa nas ruas. Dentro das cadeias é ainda pior,
conforme você acompanha na nossa série especial de reportagens
"Apagão Carcerário".
Em várias partes do Brasil nossas equipes de
reportagem mergulharam num sistema que parece funcionar apenas
para perpetuar o horror, e que torna quase impossível pensar na
recuperação de quem entrou nele.
"Isso aqui é uma fábrica de doido, porque não
tem espaço pra gente aqui”, declara um detento.
"A comida tá uma porcaria", reclama
outro preso.
“Um descaso, nós estamos largados à própria
sorte", alega outro detento.
Durante um mês e meio o Jornal da Globo acompanhou
as investigações da CPI do Sistema Carcerário. Visitamos porões,
corredores, pátios e celas de uma estrutura falida, insegura,
malcheirosa... Um depósito de gente. O Brasil tem 422 mil
presos. São necessárias mais 185 mil vagas.
"Só vejo grades, paredes, até muralhas, mas
meu pensamento eles nunca atrapalham”, canta o rapper Osmildo
Santos, preso por assassinato no Instituto Penal Paulo Sarasate,
na região metropolitana de Fortaleza. No presídio a polícia
descobriu em fevereiro deste ano, um túnel de 45 metros, faltou
pouco para os presos alcançarem o lado de fora.
"O mundão aí fora, as crianças, os jovens,
estuda. Não queira vir pra cá não, porque aqui é o
inferno", alerta Osmildo Andrade Santos, preso.
O inferno nesta penitenciária tem um apelido,
Selva de Pedra: uma ala onde ficam os presos mais perigosos do
estado. O aparato de segurança tem uma explicação: a polícia foi
informada de que haveria uma arma de fogo com os detentos.
Minutos depois da saída da equipe do JG, dois
presos foram assassinados lá dentro com pedaços de ferro. Um
deles estava com um cadeado na boca. Um recado macabro para
quem, na lei do crime, fala demais.
Em 2007, segundo o Ministério da Justiça, 1048
presos morreram dentro de cadeias e presídios brasileiros. Já
para a CPI do Sistema Carcerário, o número é maior: 1250 mortos
no ano passado.
A média é de três mortes por dia. O presídio Urso
Branco, em Porto Velho é um exemplo dessa violência. O local
ficou famoso no mundo todo por causa das cenas de horror nas
rebeliões de 2002 e 2004.
Nos últimos cinco anos, mais de 100 presos foram
assassinados dentro da cadeia. A maioria vítima de colegas de
cela, que usaram o chucho, uma faca artesanal, para cometer o
crime. Mas em dezembro do ano passado, um agente penitenciário
foi surpreendido ao fazer uma revista. Ele levou um tiro no
peito e morreu. Os presos estavam com dois revólveres dentro da
cela.
A reação da polícia deixou marcas. Dois presos
foram mortos. O responsável por entregar as armas aos detentos,
um outro agente penitenciário que acabou preso. Um ato que
provocou mortes e um sentimento de revolta.
“Revolta porque ele não só colocou a vida dos
companheiros, ele colocou todo mundo em risco de vida",
declara Wildney Jorge de Lima, diretor geral do Urso Branco.
Estar na cadeia é correr riscos - seja preso,
funcionário, policial ou visita. A dentista só concorda em
tratar do paciente se ele estiver algemado. Para o detento,
ficar numa ala dominada por uma facção rival é ser vizinho da
morte.
“Se eles souberem da gente, eles vão cortar nossa
cabeça, então a gente corre perigo e nossos familiares não estão
sabendo disso e nós precisamos sair daqui”, fala um detento.
O perigo é real diz um agente penitenciário que
pediu para não ser identificado. Ele conta que já viu diretor de
presídio, por medo ou vingança, ordenar a transferência de preso
para uma cela onde o detento só tem inimigos.
“O cara chora, diz pelo amor de Deus. Mas a gente
bota lá dentro. É determinação lá de cima. No outro dia o cara
tá morto. Já aconteceu, acontece e vai continuar acontecendo”,
conta o carcereiro.
A Comissão de Diretos Humanos da Câmara dos
Deputados recebeu em 2007, 60 denúncias de violência contra
presos.
"A gente não pode olhar pra eles, pedir uma
regalia aqui, ou então uma melhoria, eles tiram a gente, às
vezes, algemado e espanca lá fora", conta um detento.
O agente penitenciário diz que os espancamentos
são comuns e explica por quê. “Hoje uma cadeia superlotada, se
não tiver, é até contraditório isso, mas se não tiver porrada,
tem rebelião. Se você não quebrar os presos, eles vão vir pra
cima de ti e vão te quebrar. Então é a sobrevivência do mais
forte. Ou tu é a caça ou é o caçador", alega.
Em Minas Gerais nos deparamos com a imagem do
caos, que no local atende pelo nome de cadeia pública. Flagramos
as celas abarrotadas. Em um distrito policial, em Contagem, no
dia da visita da equipe do JG, 34 homens dividiam o espaço que
seria para no máximo 15.
"Tem dois meses que a gente tá aqui e não
recebe nenhuma visita”, fala o preso.
Na maioria das cadeias públicas do país, para
dormir só revezando.
“Metade em pé, metade deitada, porque tem 21
presos onde cabe seis", fala o detento.
Na penitenciária de Florianópolis, Santa Catarina,
a saída para a superlotação foi colocar os presos em contêineres
com vigilância reforçada.
Em Fortaleza, a campeã de reclamações é a comida.
Presenciamos o almoço servido em sacos plásticos.
"De repente eles sumiram com os vasilhames
deles. Nós não sabemos a razão e o porquê, e para que eles não
fiquem sem alimentação, a gente fornece então o tal do
saquinho", explica Terezinha Barreto, vice-diretora IPPS.
Nos bastidores, a polícia disse saber por que os
presos ficam com os pratos de plástico. Para derreter e fabricar
facas artesanais.
Em um pavilhão do presídio central de Porto Alegre
as celas não tem grades. Foram arrebentadas pelos presos. Para
evitar rebeliões, a brigada militar dosa repressão e concessão.
Ventiladores, televisores e geladeiras fazem parte do acordo.
“É muito na relação de confiança. Nós temos uma
superlotação. Se o preso não incomoda, faz tudo aquilo que é
determinado pelas normas legais, pelas normas da administração,
não tem porque não fornecer", alega o Tenente Cel. Éden,
diretor do Presídio Central.
Cada preso no Brasil custa R$ 1.600 por mês aos
cofres públicos. É bem mais do que ganha um agente prisional em
Goiás, que precisou comprar as algemas, porque o estado não
fornece.
“Meu salário é R$ 640 líquido, o contrato nosso é
de R$ 700”, conta Humberto Stefan, vigilante penitenciário.
“É um sistema falido, caótico, precário, terá
muita dificuldade de recuperar um sequer", diz o deputado
Neucimar Fraga, presidente da CPI do Sistema Carcerário.
“O produto que sai do presídio é um individuo que
está maximizado na carreira do crime, ele já aprendeu a praticar
o crime e ele sabe que não ficará muito tempo preso. Isso foi a
falência do sistema penal a longo prazo e é o problema que nós
enfrentamos hoje“, fala Marcio Christino, promotor de Justiça
Criminal – SP.
É nesse ambiente que Padre Marco fala de paz e
amor há mais de 12 anos.
Questionado sobre se é difícil falar de Deus na
cadeia, o padre Marco Pacerini, coordenador Pastoral Carcerária
diz: “Acho que é mais difícil falar de Deus fora da cadeia,
falar de Deus para os juízes que falam em nome de Deus, falar de
Deus para os desembargadores que falam em nome de Deus, para a
sociedade que enche a boca de Deus, para os evangélicos, os
católicos e que deixam acontecer esse desrespeito à pessoa
humana. A minha dificuldade é falar de Deus, de justiça, lá
fora, não é aqui dentro não".
O segundo distrito policial de Contagem, que
aparece superlotado na reportagem, foi desativado pela
secretaria de Defesa Social de Minas Gerais, depois da nossa
visita e está passando por reformas. Os 114 detentos foram
transferidos para outras unidades.
Fonte: Jornal da Globo
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